terça-feira, 17 de julho de 2012

HELENA DE TRÓIA EM 1997


Ele gostava de passar as tardes na biblioteca pública. Lá se dedicava a pesquisar biografias de personagens da Antiguidade na, agora extinta, Encyclopaedia Britannica. Era um programa pouco convencional para um adolescente nos idos daquele ensolarado 1997. Ao contrário do que se possa pensar, não era um nerd. Não no sentido estrito da palavra. Dividia seu tempo entre os treinos de futebol no famigerado União Sport Club, protestos contra a privatização da Vale do Rio Doce e infinitas sabatinas com amigos que se reuniam para ouvir britpop e jogar campeonatos de futebol no Super Nintendo. Tinha até namorada, uma garota católica-carismática que considerava beijo de língua pecado mortal. Era quase satisfeito com a própria vida, algo raro aos dezesseis.
Naquele dia estava mais disperso do que de costume. Tentava se concentrar na vida do “imperador filósofo” Marco Aurélio, mas a fonte pequena da Britânica associada ao  barulho de crianças que adentraram o recinto como que no recreio do inferno, fizeram com que ele fechasse o livro e começasse a se erguer para partir. Foi quando veio o silêncio. Sempre que algo muito importante vai acontecer há um segundo de silêncio que demora horas (acho que vi essa frase num filme). Naquele instante, nem um suspiro de criança era audível, a atmosfera parecia ter sido tomada uma espécie de mormaço que fazia tudo acontecer em câmera lenta. A primeira coisa que viu foram os olhos dela. Dois faróis azuis capazes de iluminar o mundo inteiro se necessário. Depois, só depois viu que era uma garota. Linda. Loira, lábios carnudos, vestidinho branco e florido, cheirando a leite de rosas. Ela era o que se pode ter de mais próximo a um anjo aqui na terra. Um anjo com fones de ouvido, ligados a um Walkman vermelho. O “posso me sentar?” dela soou como um acorde da Primavera de Vivaldi. Nem foi preciso responder.
Perguntou o que ele estava lendo. Ele estava muito embasbacado para responder. Queria saber o nome dela. Ela disse, Helena. Helena de Tróia, ele pensou. Conversaram, ela tinha dezenove. Estudava artes cênicas em Ouro Preto e trabalhava na joalheiria. Não sabia o que dizer a ela. Bastava admira-la, ouvi-la. Ela disse que já o tinha visto várias vezes na biblioteca e sempre teve curiosidade para saber o que ele tanto procurava por detras daqueles pesados volumes de enciclopédia. Biografias, respondeu. E mentiu em seguida, “hoje estou lendo sobre Páris, filho do rei Príamo”... E ela completou: “que sequestrou Helena e causou a guerra mais romântica de todos os tempos”. Não sabia o que responder. Quando ela completou: “Conheçe Pixies?”, ele só conseguir dizer “não”. Impossível não ser monossilábico perante uma deusa. Ela tirou um dos fones de ouvido e colocou no ouvido dele. Estava tocando Where is my mind e era o momento mais feliz de sua vida até então. 
Saiu da biblioteca com a sensação de que seria capaz de conquistar qualquer mulher do mundo. Olhou-se no espelho e era mais bonito que Tom Cruise, segundo seu próprio julgamento. A noite, jogou uma pelada com os amigos. Com a autoestima acima do céu, fez tantos gols que perdeu a conta. Chegou em casa, foi dormir sorrindo. Sua indelével alegria durou até às 7h10min do outro dia. Quando sentou em sua cadeira, no fundo da sala 113 do Grupo Escolar Affonso Penna, sua namorada, sem expressão na face e sem dizer palavra, entregou-lhe um bilhete. Abriu como quem espera uma declaração de amor matinal, em lugar disso leu: “TE ODEIO PRA SEMPRE. NUNCA MAIS FALE COMIGO”. Releu aquelas letras cavalares umas dez vezes, até o professor de Biologia perguntar o que havia de interessante alí. “Nada”, respondeu secamente. Dobrou o bilhete, guardou no bolso da calça, e ali decidiu. “Vou para BH, cidade pequena nunca mais”.