quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Sobre a absoluta necessidade das coisas inúteis


Mais da metade de tudo que descobri na vida, aprendi enquanto caminhava. Sentado, numa sala de aula, aprendi pouca coisa. Talvez algumas técnicas rudimentares de disfarce, enquanto tentava esconder dos professores de matemática, física e química as fórmulas que nunca se separaram de mim na hora dos antigos testes do ensino médio. Por isso, me surpreendi comigo mesmo ao constatar que em meu sexto dia de férias, no interior de Minas, tinha passado quase todo o tempo no sofá, tentando zerar Street Fighter Alpha com o Zangief, assistindo à ultima temporada de Lost e relendo Pergunte ao Pó, de John Fante.

Ao constatar tamanho lapso da razão, já há muito vencida pela preguiça, resolvi inverter a lógica proposta por Deus no Gênesis , e saí para fazer algum exercício no sétimo dia após o início do meu, até então, tedioso ócio ferial. Logo de manhã, calcei meu velho M2000, coloquei o Ipod para tocar infinitamente Walk on a Wilde Side, do Lou Reed e segui para o parque Recanto Verde com o mesmo espírito daqueles corredores alucinados do filme Carruagens de Fogo. Depois de cem metros de frenética corrida, já exausto, decidi diminuir o ritmo e ir andando mesmo. Meia hora depois chegava ao meu destino, tão cansado quanto Filípedes depois de correr a primeira maratona. Moribundo que estava, após o homérico esforço de caminhar dois quilômetros em meia hora, decidi recarregar as energias procurando sombra e água de coco. Enquanto rastreava o perímetro em busca das consolações citadas, avistei meu antigo professor de história da 8ª série. Nosso querido “Dom Isaías de la Mancha”, um genial sósia do Ray Conniff que ensinou a toda uma geração de futuros funcionários da Vale do Rio Doce que a história é algo que está acontecendo agora.

Nuvens, praia e sol. Inúteis?
San Sebastián, País Basco. 2010
Isaías era uma pessoas daquelas que a gente imagina terem sido velhas desde sempre, bem ao modo de Oscar Niemeyer e Hebe Camargo. Sempre muito reservado, nunca o tinha visto falar fora das aulas. Enquanto alunos, pouco sabíamos sobre ele, apenas desconfiávamos de seu vício alcóolico. Sempre que ele cruzava os umbrais de nossa sala, ao ambiente era acrescentado um certo odor etílico meio uísque, meio cachaça, que de certa forma conferia uma estranha credibilidade às coisas ditas por ele. Eu o admirava bastante, mas nunca tive chance de dizer isso a ele. Agora ele estava ali a poucos metros, aparentemente sozinho, sentado na grama enquanto lia um volume sem capa, com uma lata de cerveja do lado.

Nunca fui bom em puxar papo, mas para minha surpresa, quando me aproximei ele foi logo me dirigindo um sorriso e dizendo “fala meu aluno”. Mandei o clássico “o senhor ainda lembra de mim?”, e aí a conversa correu solta. Falamos dos tempos gloriosos do Grupo Escolar Afonso Pena, da política viciada de Santa Bárbara e do nosso querido União Sport Club, campeão santa-barbarense daquela temporada. Me ofereceu uma de suas Guinness que jaziam, já não tão geladas, no isopor que o acompanhava. O assunto acabou. Eu já me despedia, quando lembrei de perguntar o que ele estava lendo. “O Guia do Observador de Nuvens”, respondeu-me muito animado. Na minha empáfia, alimentada pelo orgulho de ter conversado, como amigo, de um dos intelectuais que mais admirei na vida, proferi o lamentável comentário: “Que isso Isaías, um homem de sua envergadura filosófica, perdendo tempo lendo uma coisa inútil como essa?”. Mal tive tempo de fechar a boca, e ele deixou de ser meu amigo para voltar a condição de velho e bom mestre, para me passar a sua, talvez, derradeira lição. Dizia ele, “então você acha que observar nuvens é inútil? Vou lhe contar uma breve estória chinesa que fala sobre a utilidade das coisas”. E me contou uma parábola, que depois descobri ser do livro A Via de Chuang Tzu, compilação do monge pós-moderno Thomas Merton, que reproduzo agora.
Disse Hui Tzu a Chuang Tzu: "Todo o seu ensinamento está baseado no que não tem utilidade".
Replicou-lhe Chuang: "Se você não aprecia o que não tem utilidade, não pode começar a falar sobre o que é útil. Por exemplo, a terra é larga e vasta, mas de toda a sua extensão, o homem utiliza apenas algumas polegadas, sobre as quais se mantém de pé. Suponhamos, agora, que você tire tudo o que ele realmente não usa de modo que, ao redor de seus pés, um golfo se abra e ele fica de pé no vazio, sem nada de sólido, com exceção do que se encontra bem debaixo de cada pé. Por quanto tempo poderá utilizar o que está usando?"
Disse Hui Tzu: "Cessaria de servir a qualquer finalidade".
Concluiu Chuang Tzu: "Isto prova a absoluta necessidade do que ‘não tem necessidade’".
Depois de me contar isso, despediu-se e saiu caminhando vagaroso, olhando para o alto como que a tentar classificar as nuvens que via. De minha parte, voltei para casa pensando sobre como ainda não sei nada sobre essa vida. Saberei um dia? Saberemos?  De volta ao meu sofá, liguei o computador , acessei o site da Livraria da Travessa e comprei o Guia do Observador de Nuvens. Obra fantástica, recomendo.

Pax Vobiscum amices,
Até a próxima!