segunda-feira, 21 de novembro de 2011

REVOLUÇÕES LÍQUIDAS


A melhor coisa do mundo é que há algo de revolucionário em cada coração jovem. E se não fosse o espírito revolucionário da juventude o mundo seria uma sucessão de horas e mais horas em tediosa repetição da ordem estabelecida. Poderia escrever generosas páginas sobre as grandes revoluções inventadas ou lideradas por mentes jovens. Temos exemplos na política, nas artes, na ciência, nos esportes, por todo lado. Em todos os campos que o humano ousou caminhar, sempre houve um desses seres inquietos de espírito juvenil, dispostos a refazer a trilha. “E Deus viu que isso era bom”.

E foi assim, de revolução em revolução que chegamos onde estamos. No Brasil, por exemplo, as revoluções e insurreições juvenis sempre estiveram presentes nos momentos mais marcantes de nossa história. Basta olharmos as últimas décadas. Nos anos 60, “Abaixo a Ditadura”; nos anos 70, “Pela Anistia”; nos anos 80, “Diretas Já”; nos anos 90, prefiro deixar o “Fora Collor” de lado e citar os protestos contra as privatizações ao som do famoso “Fora FMI”. Assim foi, seguindo o rumo dessas passeatas que construímos o país no qual vivemos.

Não podemos negar a largueza dos passos dados. Avançamos muito nas últimas décadas, temos uma economia estável, uma classe média com bom poder econômico e boas perspectivas de crescimento para os próximos anos. Olhando assim, até aparece que chegamos a um bom nível de bem estar social. Será que os jovens já não tem mais pelo que protestar? Basta dar dois passos para além da “zona sul” de qualquer grande cidade para perceber que motivos para protestos não faltam. Nossa educação está em frangalhos, pessoas dormem na rua e passam fome, a agricultura familiar carece de incentivos [enquanto o agronegócio expulsa as populações rurais e, sem dó, devasta a natureza], bilhões evaporam pela corrupção, pela burocracia e pelo espírito faraônico de certos governantes que acham lindo a gente sediar uma Copa do Mundo FIFA mesmo sem ainda ter resolvido problemas primários como o saneamento básico.

Há inúmeros motivos justos para protestar. Mas sinto que a alma protestante de nossos jovens perdeu duas coisas fundamentais entre uma passeata e outra: senso de justiça e coragem.

Achei fantástica toda aquela história de “Primavera Árabe”, os protestos organizados pelo Facebook, a juventude de classe média clamando por democracia (será?) e tal. Ali temos uma causa justa, original e defendida com coragem pelos árabes, afinal a maioria deles está disposta a sangrar em favor das pelejas que assumem. O que me espantou foi o reflexo disso no Ocidente. Não sei se por inveja, por tédio ou pela contaminação osmótica a qual todos nós usuários de redes sociais somos acometidos, passamos a querer protestar também. Mas qual é a nossa causa?
Alto-Falantes para reclames populares
Francisco Badaró, MG  - Julho de 2010
Desde os “salteadores” do BBM em Londres (indignados com a falta de emprego e tarados por bolsas Louis Vuitton), até os pacíficos ocupantes de Wall Street ou da Cinelândia, o que se vê é um inventário de reinvindicações tão extenso quanto desconexo. Olhemos para o nosso umbigo e vejamos nossos protestos: protesta-se contra o capitalismo e o FMI, pela diminuição dos impostos sobre importados (quero meu Ipad 3 mais barato!), contra Belo Monte, contra a desigualdade social, contra as UPPs. Pausa para uma Coca-Cola "zero" entre um protesto e outro. Continuando, contra Ricardo Teixeira, a favor a eutanásia e do abroto, pela descriminalização da maconha,  pelos direitos dos homossexuais... Ufa, tantas causas. Mas na primeira chuva, a maioria dos protestantes desaparece como pó. Ocupação de fim de semana? É nessa hora que os árabes riem alto de nós.

Antes de terminar, algumas perguntas. Nossas causas são justas? Conhecemos, a fundo, todas essas bandeiras pelas quais nos reunimos e lutamos? Estou protestando do jeito certo (vou a Brasília, finco um monte de vassouras, em seguida, vou embora)? Amo a causa pela qual estou lutando? Será que estou aqui porque é muito maneiro armar uma barraca no centro da cidade, me juntar a um monte de amigos para tocar violão à noite de dormir de dia? Qual é a minha causa?

Respostas? Nenhuma. Mas não custa ouvir a voz de um poeta morto: "(…)sabes como é difícil sofrer tudo isso, amontoar tudo isso num só peito de homem… sem que ele estale". Drummond, que protestava em silêncio, escrevendo e sendo boa gente.

De longe, vejo nossas causas misturadas, liquidificadas (ave Bauman!). Os protestos perdem a forma, consistência, se esparramam, escorrem entre nossos dedos, deixando de ser palpáveis ate se tornarem ótimos vídeos no You Tube. 

terça-feira, 13 de setembro de 2011

É SEMPRE NO PASSADO AQUELE ORGASMO


Acabo de completar trinta anos e descobri que estou ficando velho. Não se trata da idade. Muitos atletas atingem o auge da forma justamente aos trinta, como Pelé na copa de 70. Na Grécia Antiga só se ingressava na vida política após três décadas de vida. E segundo a tradição cristã, o próprio Jesus só se sentiu pronto para iniciar sua “vida pública” depois de completar trinta anos. Não é pela idade em si, mas pelos sintomas que a acompanham. Associo a ideia de "velho" a ficar parado. Parado no tempo. Não foi difícil perceber que assim estou.
Outro dia fui renovar minha sagrada running playlist,  no Phillips GoGear. Selecionei as seguintes músicas para 40min a 9km/h na esteira: Bad Moon Rising - CCR / Born to Be Wild - Steppenwolf / She’s a Sensation - Ramones / Should I Stay or Should I Go - The Clash / A Little Less Conversation / Elvis vs JXL / I Will Survive - Cake / New Generation - Suede / Song 2 - Blur / Reptilia - Strokes / Molly’s Chambers - Kings of Leon. Pode ter certeza, é uma ótima playlist para corrida, só que  a música mais nova aí deve ser de 2003. Na tentativa de renovar, descobri que não conheço nenhuma banda nova. Essa descoberta ressoa meio melancólica na cabeça alguém que, há uns dez anos, esperava ansioso pela Folha de São Paulo às sextas, porque a Folha Ilustrada vinha sempre repleta de novidades do mundo da música. Hoje, ainda estou esperando pelo disco novo do Blur, como os judeus aguardam pelo messias. Existe povo mais velho do que o povo judeu?
Ah, a idade. A gente só vai percebendo aos poucos. Alguém te pergunta, “você já leu o novo do Daniel Galera?” e você responde, “Daniel, o quê?”. Você liga o Playstation 3 para jogar Super Metroid gravado num disco com mais 2100 jogos para Super Nintendo.  Caminha ate a locadora, procura algo engraçado e volta com “Curtindo a Vida Adoidado” pronto para dar boas risadas. Domingo é dia de reunir os velhos amigos para aquele desafio de War, mas aí você percebe que, no seu tabuleiro, o país mais difícil de conquistar ainda é a União Soviética. E como última loucura retrô nós, os velhos, usamos filtros no Photoshop para fazer as nossas fotos novas parecerem antigas. Chega. Lembro de um verso do Drummond, “é sempre no passado aquele orgasmo”. Verdade maior. Será o título dessa postagem.
As vezes a gente está tão apegado às paixões do passado, que não nos permitimos amores novos. Mas o velho dito latino não permite acomodação, Tempus fugit. Para um usar uma metáfora mais moderna, "computador desatualizado se enche de vírus".
Então corro em busca do que há de novo. E é claro que há novidades, adaptações necessárias. No guarda-roupas, as camisetas Redley perderam espaço para as camisas sociais de cores sóbrias. Não é mais possível sair sem o smartphone. E se viajar é preciso, o principal destino deixou de ser a Serra do Caraça, porque agora os salões de conferência em São Paulo ou em Brasília são mais urgentes. Nem tudo é trabalho. Há o jogo de tênis, sempre um filme novo do Wood Allen no cinema e as férias de fim de ano para planejar. No fim, uma certeza. É preciso abrir espaço para novidades. Desenvelhecer. 

Decidido, em dezembro, vou para um lugar que nunca fui. 

quinta-feira, 28 de julho de 2011

CONEXÃO BSB: INFERNO DE AZULEJOS

Azulejos de Athos Bulcão, Aeroporto JK  [Foto do Celular]
Odeio lugares onde não estamos em lugar nenhum. Aeroportos, principalmente. O de Brasília, mais que todos os outros. Quem me conhece ou lê sabe, não sou do tipo negativista. Prefiro escrever sobre o que gosto, às vezes falo sobre alguma angústia, raramente sobre o que não me agrada. O meu desgosto prefiro calar. Mas o Aeroporto JK, que os cartões de embarque denominam "BSB", acaba de despertar em mim uma espécie de ódio ancestral. Aquela coisa que sentimos somente quando irritados ao extremo, seguidamente, pela mesma pessoa (no caso, lugar).

Motivo? Vários. Uma chegada a contra gosto. Duas despedidas traumáticas, sendo uma com direito a coração partido. Intermináveis horas de espera devido a conexões, atrasos. Uma aterrissagem escandalosamente mal executada pelo piloto. Os azulejos nonsense do Athos Bulcão. E uma série de outros infortúnios que não saberia descrever sem diminuir o nível da linguagem. Para completar, o cinema, único espaço passível de boa recordação aqui, não funciona mais. E como se não bastasse tudo isso, a Laselva daqui tá mais pra banca de jornal que pra livraria.

Se o inferno é o pior lugar que alguém pode estar, eu já conheço o meu. E quando no fim dos meus dias a soma das minhas ações pender pro lado negativo, receio que Deus já sabe para onde me enviar.

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Eis o milagre enquanto escrevo, acabam de chamar o 1589, com destino ao SDU. É o meu.

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Dos males o menor, enquanto esperava consegui ler todo o "Elogio à madrasta", do Mario Vargas Llosa. Em uma palavra, angelical. Leia.

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Desculpem-me qualquer erro que fira mui gravemente o idioma de Camões, é que este texto foi escrito e postado do meu bom e velho Nokia e72. Depois corrijo os absurdos. Despeço-me, finalmente, acomodado na poltrona do avião. Parece que já vão fechar as portas. Câmbio e desligo.

sexta-feira, 15 de julho de 2011

NO PRINCÍPIO ERA O VERBO: SOBRE A IMPORTÂNCIA DA PRIMEIRA FRASE DE UM TEXTO



No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus.
Início do Evangelho de João

Todas as experiências humanas são passíveis de se tornarem grandes textos. Chega a ser desesperadora a intuição de que cada instante vivido pode ser o princípio de uma obra prima literária. Todos os escritores do mundo, desde blogueiros até catedráticos de respeitadíssimas academias, estão repletos de ideias geniais para escrever e publicar. Mas nem tudo vira texto, nem tudo que vira texto é publicado e nem tudo que é publicado é genial. Quase nada é. Por quê? Haverá um “por quê”? Não creio.

Quando penso nos textos geniais que imaginei e não escrevi, só uma coisa me vem à cabeça: não escrevi porque não comecei. Às vezes creio que sofro de algo como que uma “síndrome do não-começo”. Quantos textos deixei de escrever porque não soube começar! Começar é difícil, é um tal de escrever a apagar que não acaba. Isso porque, de todas as linhas de um texto, seja ele um calhamaço de 1000 paginas ou os 140 caracteres de um tweet, nada é mais dispendioso do que a primeira frase. Há teses e mais teses, engavetadas nas bancas de doutoramento literário, sobre a arte de escrever a primeira página de um livro. Da primeira página depende muita coisa, mas ainda acho a primeira frase mais dolorosa para quem escreve e mais definitiva para quem lê. Ninguém termina a primeira pagina sem se apaixonar pela primeira frase. Numa época de leitores impacientes, a primeira frase é quase uma cantada. Seu poder de sedução tem de ser forte, para que o leitor siga adiante.

“Era inevitável: o cheiro das amêndoas amargas lhe lembrava sempre o destino dos amores contrariados.” Assim, Gabriel Garcia Marquez inicia de forma arrebatadora um de seus clássicos, O Amor nos tempos do cólera. Se há uma frase que pode resumir o livro aí está ela. E como alguém pode deixar de ler todo o livro depois de sentir o aroma dessas amêndoas?

Nas portas há mais detalhes do que se imagina.
Catedral de Amiens, abril de 2010

Muitas vezes, a primeira frase é o motivo de paixão desenfreada ou de ódio extremo. Poucas coisas podem revoltar tanto um leitor quanto uma primeira frase de 10 linhas, como José Saramago ousou em O Evangelho segundo Jesus Cristo. Bom, a Saramago tudo perdoamos. Não que a primeira frase não possa ser longa, até hoje guardo comigo, o começo de O apanhador no campo de centeio, de J. D. Salinger: “Se querem mesmo ouvir o que aconteceu, a primeira coisa que vão querer saber é onde eu nasci, como passei a porcaria da minha infância, o que meus pais faziam antes que eu nascesse, e toda essa lengalenga tipo David Copperfield, mas, para dizer a verdade, não estou com vontade de falar sobre isso”. É como se Salinger estivesse dizendo “escrevo como quero, quando quero e pra quem quiser ler”, todo um estilo está delineado nesta primeira frase. Poucos são capazes de contar quem são logo na entrada.

Talvez o maior mestre na alquimia das primeiras frases seja Franz Kafka. Toda sua obra é um convite à reflexão sobre o absurdo da existência e não há nada mais absurdo [no melhor sentido da palavra] na história da literatura do que as primeiras frases de Kafka. Tomemos o início de suas obras mais conhecidas.

“Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso.” [A metamorfose] // “Alguém certamente havia caluniado Josef K., pois uma manhã ele foi detido sem ter feito mal algum.” [O Processo]

Não há motivos nem justificação, somente fatos. Como a vida. Isto é Kafka, uma espécie de sinceridade exagerada desde a primeira linha.

Dizem, a primeira impressão é a que fica. Quanto tempo dura a primeira impressão na literatura? Varia de autor para autor, de leitor para leitor. Com diria Drummond, escrever e ler é “lutar com palavras”.  Talvez o segredo, para quem escreve, seja manter desperto o leitor, frase por frase, desde a primeira.

A primeira frase, pedra angular de nossa escritura, a mais difícil de ser esculpida. Porta. Deixemos aberta.

quinta-feira, 19 de maio de 2011

QUANDO POSSÍVEL

Por esses dias tenho pensado muito numa improvisada exposição literária que vi, ano passado, em Paris. Acho que é por saudades de lá. Tratava-se de uma coletânea de fragmentos, escritos à mão em cartolinas toscas e dispostos, sem muita ordem, numa grade da Rue de Vaugirard. Eram centenas de pequenos textos, que pareciam ter sido colhidos aleatoriamente entre as obras mais notáveis da literatura universal. Víamos ali Dostoievski , Poe, Verne, Huxley, Kipling, Saramago, e até o nosso Drummond. Todos devidamente traduzidos para o francês, talvez pelo anônimo autor da estranha letra que constava nos “cartões literários”. 

Em meio a tantos nomes conhecidos e textos consagrados, um pequeno poema, de um autor estranho, me marcou para toda vida. Estava num canto, espremido entre um poema de Petrarca e um recorte de Bernanos, um pequeno poema intitulado “Autant que Possible”, atribuído a um certo Constantin Cavafy [também grafado, Konstatínos Kavafís], que mais tarde descobri ser um grande poeta grego, outro daqueles que não nos são permitidos conhecer, por falta de tradução. 

Compartilho aqui, uma foto do Autant que Possible e a tradução livre que fiz para divulgação.

clique na imagem para ver em tamanho original


QUANDO POSSÍVEL

Se não lhe é possível viver como você gostaria
cuide, pelo menos, de não reduzir sua vida
ao excessivo contato com as pessoas
multiplicando gestos e palavras.

Não banalize a vida, indo de um lado para outro,
expondo-se à estupidez das relações humanas
no cotidiano das multidões, para que ela (sua vida)
não se transforme em uma inconveniente estranha.

[Constantin Cavafy, 1863-1933]

***

Às vezes caminho pela Rua das Laranjeiras, na esperança de achar algo semelhante. Até hoje, nada. Acho que é só saudade de Paris. 

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Sobre a absoluta necessidade das coisas inúteis


Mais da metade de tudo que descobri na vida, aprendi enquanto caminhava. Sentado, numa sala de aula, aprendi pouca coisa. Talvez algumas técnicas rudimentares de disfarce, enquanto tentava esconder dos professores de matemática, física e química as fórmulas que nunca se separaram de mim na hora dos antigos testes do ensino médio. Por isso, me surpreendi comigo mesmo ao constatar que em meu sexto dia de férias, no interior de Minas, tinha passado quase todo o tempo no sofá, tentando zerar Street Fighter Alpha com o Zangief, assistindo à ultima temporada de Lost e relendo Pergunte ao Pó, de John Fante.

Ao constatar tamanho lapso da razão, já há muito vencida pela preguiça, resolvi inverter a lógica proposta por Deus no Gênesis , e saí para fazer algum exercício no sétimo dia após o início do meu, até então, tedioso ócio ferial. Logo de manhã, calcei meu velho M2000, coloquei o Ipod para tocar infinitamente Walk on a Wilde Side, do Lou Reed e segui para o parque Recanto Verde com o mesmo espírito daqueles corredores alucinados do filme Carruagens de Fogo. Depois de cem metros de frenética corrida, já exausto, decidi diminuir o ritmo e ir andando mesmo. Meia hora depois chegava ao meu destino, tão cansado quanto Filípedes depois de correr a primeira maratona. Moribundo que estava, após o homérico esforço de caminhar dois quilômetros em meia hora, decidi recarregar as energias procurando sombra e água de coco. Enquanto rastreava o perímetro em busca das consolações citadas, avistei meu antigo professor de história da 8ª série. Nosso querido “Dom Isaías de la Mancha”, um genial sósia do Ray Conniff que ensinou a toda uma geração de futuros funcionários da Vale do Rio Doce que a história é algo que está acontecendo agora.

Nuvens, praia e sol. Inúteis?
San Sebastián, País Basco. 2010
Isaías era uma pessoas daquelas que a gente imagina terem sido velhas desde sempre, bem ao modo de Oscar Niemeyer e Hebe Camargo. Sempre muito reservado, nunca o tinha visto falar fora das aulas. Enquanto alunos, pouco sabíamos sobre ele, apenas desconfiávamos de seu vício alcóolico. Sempre que ele cruzava os umbrais de nossa sala, ao ambiente era acrescentado um certo odor etílico meio uísque, meio cachaça, que de certa forma conferia uma estranha credibilidade às coisas ditas por ele. Eu o admirava bastante, mas nunca tive chance de dizer isso a ele. Agora ele estava ali a poucos metros, aparentemente sozinho, sentado na grama enquanto lia um volume sem capa, com uma lata de cerveja do lado.

Nunca fui bom em puxar papo, mas para minha surpresa, quando me aproximei ele foi logo me dirigindo um sorriso e dizendo “fala meu aluno”. Mandei o clássico “o senhor ainda lembra de mim?”, e aí a conversa correu solta. Falamos dos tempos gloriosos do Grupo Escolar Afonso Pena, da política viciada de Santa Bárbara e do nosso querido União Sport Club, campeão santa-barbarense daquela temporada. Me ofereceu uma de suas Guinness que jaziam, já não tão geladas, no isopor que o acompanhava. O assunto acabou. Eu já me despedia, quando lembrei de perguntar o que ele estava lendo. “O Guia do Observador de Nuvens”, respondeu-me muito animado. Na minha empáfia, alimentada pelo orgulho de ter conversado, como amigo, de um dos intelectuais que mais admirei na vida, proferi o lamentável comentário: “Que isso Isaías, um homem de sua envergadura filosófica, perdendo tempo lendo uma coisa inútil como essa?”. Mal tive tempo de fechar a boca, e ele deixou de ser meu amigo para voltar a condição de velho e bom mestre, para me passar a sua, talvez, derradeira lição. Dizia ele, “então você acha que observar nuvens é inútil? Vou lhe contar uma breve estória chinesa que fala sobre a utilidade das coisas”. E me contou uma parábola, que depois descobri ser do livro A Via de Chuang Tzu, compilação do monge pós-moderno Thomas Merton, que reproduzo agora.
Disse Hui Tzu a Chuang Tzu: "Todo o seu ensinamento está baseado no que não tem utilidade".
Replicou-lhe Chuang: "Se você não aprecia o que não tem utilidade, não pode começar a falar sobre o que é útil. Por exemplo, a terra é larga e vasta, mas de toda a sua extensão, o homem utiliza apenas algumas polegadas, sobre as quais se mantém de pé. Suponhamos, agora, que você tire tudo o que ele realmente não usa de modo que, ao redor de seus pés, um golfo se abra e ele fica de pé no vazio, sem nada de sólido, com exceção do que se encontra bem debaixo de cada pé. Por quanto tempo poderá utilizar o que está usando?"
Disse Hui Tzu: "Cessaria de servir a qualquer finalidade".
Concluiu Chuang Tzu: "Isto prova a absoluta necessidade do que ‘não tem necessidade’".
Depois de me contar isso, despediu-se e saiu caminhando vagaroso, olhando para o alto como que a tentar classificar as nuvens que via. De minha parte, voltei para casa pensando sobre como ainda não sei nada sobre essa vida. Saberei um dia? Saberemos?  De volta ao meu sofá, liguei o computador , acessei o site da Livraria da Travessa e comprei o Guia do Observador de Nuvens. Obra fantástica, recomendo.

Pax Vobiscum amices,
Até a próxima!