quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

João, Anita e Dezembros


Honrarei o natal em meu coração e tentarei conservá-lo durante todo o ano.
Charles Dickens

João tinha a profissão de José, era Carpinteiro. Da instransponível oficina nos fundos de casa tirava o sustento da família. Serrote, enxó e martelo eram suas mãos. Sempre cheirava à madeira e cachaça. Era especialista em fazer mesas, armários e portas, mas gostava mesmo de fazer brinquedos para as crianças. Ele se divertia com o riso delas no quintal. Fingia raiva quando a meninada subia no pé-de-laranja, só para não perder o respeito. Suas camisas engomadas, seu paletó de ir à missa no domingo, seu cinto marrom com bainha para o inseparável canivete, o baralho encardido e sua voz mínima no som e máxima na autoridade, eis a mais forte memória coletiva da família.

Anita era Dona de Casa. Assim, maiúscula. Fazia da casa o reino de suas infinitas habilidades. Cuidava de um jardim que parecia crescer pra sempre. Rosas, margaridas, violetas, hortênsias, quase nenhum vaso. Tudo plantando direto na terra, como as plantas gostam. Fazia tricô, crochê e bordado. Gostava de tons marrons para suas peças, acho que porque combina com as peças de madeira talhadas por João. Cozinhava no fogão à lenha, porque não sabia calcular o tempo das quitandas no fogão à gás. Fazia os melhores doces do mundo e não provava nenhum, porque era diabética. Seus vestidos longos, sempre com estampas de flores, seus óculos de lentes grossas e sua doce seriedade cotidiana, formavam a imagem de uma santa, a única que podia rezar com a gente.

Em dezembro, todos vinham para casa abraçar João e Anita. Era quando os móveis e brinquedos de João faziam sentido. Era quando o jardim de Anita ficava mais florido. Aquela inexplicável felicidade de casa cheia. Pais, filhos, netos e algum bisneto. Novena de natal, comidas, histórias e estórias, as de sempre. Tudo tão igual ao ano anterior, tudo tão sincero. Dezembro terminava num domingo de manhã, depois do natal, com as despedias debaixo do pé-de-laranja velho.

Já faz alguns dezembros que João Damasceno Ferreira e Anita Damasceno Lopes, meus queridos avós maternos, se encantaram. Ficou a casa velha. Nela as ferramentas, móveis e brinquedos de João, as flores e bordados de Anita. Em breve estaremos todos lá. Sabemos que os dezembros nunca foram os mesmos sem João e Anita, mas se há dezembros é porque um dia eles estiveram lá.

***
Não aprendi ser carpinteiro como João. Não herdei nenhuma habilidade de Anita. Hoje compro os meus móveis e mal sei o período que tenho de regar meus mínimos vasos com cactos do deserto. Aprendi pouco ou quase nada com João e Anita. Mas quando lembro de João martelando na oficina e de Anita assoprando a lenha no fogão, percebo que com eles aprendi o mais importante: tudo que é simples, é mais fácil de amar. A eles, minha gratidão eterna.

***

Pax vobiscum amicis,
Boas Festas!

domingo, 10 de outubro de 2010

EU, QUE SÓ QUERIA COMPRAR UM VINHO

(...) e sua profissão o acostumara ao manejo ético do esquecimento.
Gabriel Garcia Máquez

Vivemos em uma época admirável. Duvida? É Possível encontrar um bom vinho francês, italiano, chileno ou português num supermercado de nome “Princesa” há duas quadras de sua casa. E isso sem ter de desembolsar algo que supere módicos 30 ou 40 reais. É ou não é uma época admirável?  Só que a mesma época que nos permite o encontro com os vinhos, muitas vezes, nos afasta das pessoas, até daquelas a quem amamos. Os vinhos são necessários, as pessoas imprescindíveis.

Foi por causa de um vinho que a revi. Era uma daquelas típicas manhãs de sábado carioca. Fresca e com pouca gente na rua. Precisava cLomprar uma garrafa para uma confraternização entre amigos, mais à noite. Desci a rua das Laranjeiras, a pé, como quem se adianta rumo a adega de um château na Borgonha. Já próximo ao Largo do Machado, caminhava distraído, ébrio pela música que o ipod, aleatoriamente, escolheu para mim. Carmina Burana de Carl Orff. É estranho como certas músicas tem a vocação para emoldurar momentos marcantes. Alheio a todo resto, ignorei aquela sensação que antecede aos grandes momentos da vida,  aquele suspiro que apelidamos de presságio. Ignorei, pois estava amando a minha distração. O momento da distração é quase como um transe. Hipnose? Esquecimento mor. E existe algo melhor do que esquecer?

Metáfora perfeita para o esquecimento
 Buzet-Sur-Tarn [21/05/10]
Esvaziei-me a ponto de quase não-estar, aproximei-me de não ser. A música era silêncio. Caminhava sem andar, olhava sem ver. Só ia. Eu era uma ópera barroca flutuando rumo ao Sendas. Nada poderia impedir o meu Nirvana. Mas o destino, inevitável alquimista das horas, a todo instante nos avisa: há coisas tão impossíveis de esquecer. Foi quando que, do nada, aquele rosto. O mesmo. Nove anos e era a mesma. Tão bucólica, tão mineira. Parecia passear na praça da matriz, em Santa Bárbara. Revolto na ebulição de centenas memórias ressuscitadas, gritei. Ela ouviu. Um abraço, máximo abraço. Tanta coisa pra dizer, mas ela não podia parar. Foram cinco minutos de amor recuperado. Pedi o telefone. Anotei. Disse tchau. Ainda vi quando ela se apressou pelas escadarias do metrô. Último aceno.

Já se passaram três meses. Não liguei. Vivo, atualmente, em um estado de felicidade milimétrica. Um passo para trás ou para frente pode significar o fim das consecutivas alegrias que tem me atingido, ainda que eu não tenha mérito para tanto. Talvez haja algum medo de deixar escapar tudo que está ao meu redor. Mas se é para arriscar, que seja com uma passo pra frente. 

Ainda naquela manhã, comprei o vinho. Um pinot noir uruguaio de 2004, que não recordo o nome. O tempo faz bem aos vinhos. As vezes faz o mesmo com o amor. Mas para alguém cuja profissão exige o manejo ético do esquecimento, o tempo é só um aliado no penoso processo de esquecer.  Amo mais o esquecimento que o próprio amor. À noite, enquanto refletia sobre o royal flush de copas que tinha na mão, contei a história para meus amigos. Conferi uma certa gravidade ao momento. Hermeticamente, brindamos ao esquecimento. Mostrei as cartas. Sorrisos. O mundo começava a voltar ao normal.

Agora, enquanto escrevo, volto a ouvir a opera magna de Carl Orff,. Salto logo para o décimo quinto movimento, Amor volat undique [O amor voa por toda parte]. Respiro a música. Deixo-me distrair. Escrevo sem meditar. Verba volat undique [as palavras voam por toda parte]. Recomeço a esquecer. Esquecer é causa eterna. Sigo. Eu, que só queria comprar um vinho.

***
Abraço,
Até a próxima!

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

2010: o ano da dupla primavera

A primavera chegará, mesmo que ninguém mais saiba seu nome,
nem acredite no calendário, nem possua jardim para recebê-la.
Cecília Meireles

Este ano, por causa de uma feliz concatenação de fatos, terei a sorte de caminhar entre duas primaveras. Entre março e junho vivi a primavera do hemisfério norte, estudando em Paris. Hoje começa a nossa primavera tropical, e cá estou eu, pelejando minha arte no Triangulo Mineiro. Dois mil e dez, o ano da dupla primavera.
Tulipas nos jardins de Notre Dame. Paris, abril de 2010
Em cada canto do mundo, a estação das flores nos comove de maneira própria singular. A primavera boreal nos oferta cerejeiras, tulipas e margaridas. Já a austral costuma nos brindar com ipês, lírios e gardênias. Seja onde for, ela é uma mensagem sazonal  de alegria. Por sorte muita gente a compreendeu e deixou florescer em si, as pétalas de inspiração que ficaram imortalizadas em versos, canções e pinceladas. Das quatro estações, a mais retratada. Das quatro estações, a mais poetizada. Das quatro estações, a mais cantada.

Cerejeira. Taizé, abril de 2010
Por encanto primaveril, Neruda imaginou seus mais belos versos."Te trarei das montanhas flores alegres,/copihues, avelãs escuras, e cestas silvestres de beijos.Quero fazer contigo o que a primavera faz com as cerejeiras"Ao ver a explosão anual das flores, Vivaldi convocou os violinos celestes, para compor a mais bela peça das Quatro Estações. No mais prodigioso quadro de Botticelli, as Graças, Hermes e Vênus dançam a alegria de mais um equinócio da primavera boreal.  Foi à primavera, que Cecília Meireles ofertou sua mais bela crônica. Era nessa época que Van Gogh saía pra pintar ao ar livre. Jorge Luís Borges, mesmo cego, intuía flores pelo cheiro, por isso amava, mais que qualquer outro, a estação da deusa Ostara. E se há alguma tristeza em nosso coração, é só ligar o som e colocar pra tocar "you can never hold back spring"[click para ouvir], do Tom Waits, pro mundo virar outro.

Primavera. Sandro Botticelli, 1492.
Assim segue a primavera, iluminando plantas, bichos, deuses e homens. Aproveitemos a inspiração possível. Deixemos florescer em nós este sentimento primaveril. Tenhamos flores conosco. Nas mãos, na cabeça e no peito.

Pax Vobiscum amicis
Até a próxima


P.S.: Muitas imagens neste post. Porque a primavera, muito mais do que ser explicada, merece ser vista, contemplada e vivida.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

ARREBOL


A mais honrosa das ocupações é ser útil ao maior numero de pessoas possível.
Michel de Montaigne

O lugar
Um dia você acorda no meio de uma megalópole, como escrevi na postagem anterior, já noutro dia você acorda no meio do sertão. Em uma palavra: choque. Desaparecem o asfalto, as buzinas, todas aquelas infinitas possibilidades de encontros e programas. No lugar está a poeira da estrada, pavimentada somente por cascalho, o grito desesperado dos galos matinais e uma rotina que não permite muitas alterações. Todo dia os mesmos caminhos, as mesmas pessoas, os mesmos trabalhos. Mas não é uma rotina semelhante a da cidade, tudo é mais natural e espontâneo. A impressão que tenho é que a aqui o mundo acontece e a gente é parte dele, não é um mundo criado por nós, é um mundo do qual participamos, como coadjuvantes já muito acostumados com seus mínimos papéis.

Revoada de Concrizes, será que vai chover?
Como na cidade, há perigos. Se por um lado não é preciso trancar portas, por outro, sempre que for se vestir é preciso conferir as peças de roupa, os calçados e tudo mais para escapar de possíveis animais peçonhentos. Há muito sol e pouca água. O chão é seco e difícil de plantar. O trabalho de cultivar aqui é quase que dobrado. O outro nome do sertão é desafio. Este lugar desafia as pessoas a viverem aqui. Estamos, todo o tempo, armados para um duelo.


O povo
A primeira impressão do povo sertanejo é de que as pessoas daqui são quase tão secas quanto a terra. Poucos olhares, muitos silêncios,   prosa rara. Ledo engano. Coisas de primeiro e inocente olhar. De fato, eles são como a terra, aparentam secura, mas se você faz o mínimo esforço de cultivar, tudo nasce. Com as pessoas daqui é a mesma coisa. Só que pessoas não se cultiva, pessoas a gente cativa. E se deixa cativar por elas também. Euclides da Cunha insistia que o sertanejo é, antes de tudo, um forte. Verdade. Aprofundando, também é sábio, contador de “causos”, moroso, bravo, impiedoso com os inimigos, rancoroso e santo.

Sol a Sol
O dia começa cedo. A gente acorda lá pelas cinco e meia, vencidos pela insistência da orquestra de galos. Tomamos um gole de café, aproveitamos que o clima ainda está fresco e partimos para a jornada. São oito quilômetros do vilarejo até a roça que cuidamos. Eu faço o caminho de bicicleta. Na estrada, quase todos vão de moto. Ainda há os que vão a cavalo, muitos a pé e uns raros, muito raros, que tem alguma camionete, charrete. Vamos juntos, trocando cumprimentos, seguindo um trecho de estrada juntos, compartilhando o nascer do sol com passarinhos, vacas, capins, aroeiras e poeira.

Fogão da Nice, feijão e galinha d'angola
Chegando na roça, antes de começar a lida,  é  sempre bom ir nos vizinhos que tem casa por lá. Lá está o café mais reforçado. Na casa de seu Joaquim Branco, sempre tem café ralo e alguma quitanda boa. Tapioca, em geral. Na casa de dona Nice, café forte e bolacha comprada na rua. Alimentados, vamos a lida.

Trabalhamos em torno de um grande açude. Nossa missão: reflorestar. Há muito por fazer. Mais de oitenta por cento da mata já virou carvão. O que resta, segue o mesmo destino. Ali, bem próximos a água, fazemos mudas. Já temos muitas. Mudas de tudo quanto há de árvores nativas. Leucena, ipê amarelo, pau-pintado, angico, tambaqui [que eles não gostam, porque as vacas comem e abortam], cedro, sucupira, tantas. Frutíferas também. Mil mudas. Distribuição gratuita. E é bom ver que tem gente querendo plantar.

Há quem queira parar com o carvão para começar com agricultura. Poucos. Melhor que nada. Já tem gente plantando horta, onde achava que hortaliça não nascia. Dá gosto de ver. Cresce uma ponta de orgulho. Dá uma vontade de continuar.

Vamos trabalhando. Dá quatro da tarde, o sol mais baixo. Rumamos pra casa. O mesmo caminho, as mesmas pessoas, quase sem novidades. Talvez um futebol no campinho. Depois, banho frio. Jantar. Casa dos vizinhos. Muita prosa: o preço das coisas, eleições, quando vem a chuva, campeonato brasileiro e do gol perdido na pelada de agora a pouco. Falamos de tudo que cabe. Enfim, muitos "causos". Muitos mesmo. Sempre tem um bom. E quando há o silencioso consenso coletivo de que um certo caso foi bom, vamos dormir. Amanhã o dia começa cedo.
Arrebol vespertino no Sertão [05/09/10]
***
Livros que tem me ajudado
Manual do Arquiteto Descalço, Johan van Lengen
Obra Completa, Paul Verlaine
Ensaios, Michel de Montaigne
Guia Ilustrado Zahar de Astronomia,  Ian Ridpath
O livro de São Cipriano, o Bruxo
Abre a Porta: Cartilha do Povo de Deus, Diocese de Caratinga
Vidas Secas, Graciliano Ramos




***
Abraços,
Luz na Caminhada.


segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Um dia você acorda no meio de uma megalópole...

A maioria dos homens vive uma existência de tranquilo desespero. [Henry Thoureau]

 Um dia você acorda no meio de uma megalópole e a primeira buzina mal-educada te faz pensar: eu não sou daqui.

Um dia você chega em seu trabalho e percebe que noventa e cinco por cento dos sorrisos e cumprimentos que recebeu nos corredores, no elevador e pelo telefone são automáticos demais para serem verdadeiros.

Um dia você se vê atolado em burocracia, dentro de um escritório congelado pelo ar condicionado que não te deixa respirar. Todas aquelas horas na frente do computador estão te matando.

Um dia você percebe que sempre diz “sim senhor” para o seu chefe, mesmo quando ele está redondamente enganado. Mentir pra você mesmo se torna quase natural.

Um dia você se cansa de todas aquelas reuniões de revisão e planejamento, cujo o resultado são outras reuniões que tendem a se multiplicar até o infinito.

Um dia você percebe que o dinheiro corrompe as pessoas de maneira absurda e você não consegue escapar dessa lógica maldita.

Um dia você olha para a sua pasta de musicas no computador e só tem coisa antiga.  Você não tempo para descobrir coisas novas.

Um dia você reabre aquele livro que começou a ler tem mais de um mês. Você ainda está na pagina cinqüenta e seus olhos já estão pesados demais pra continuar.

Um dia você abre o jornal e vê um filme ou peça de teatro que te interessa, é a última semana em cartaz. Você olha sua agenda. No único dia que você pode, nenhum dos seus amigos pode ir com você.  No dia seguinte trinta pessoas querem que você vá ao aniversário delas.  Você prefere ficar em casa comendo Ruffles e assistindo a um filme velho no Telecine. 

Um dia sua namorada te liga, você vê o nome dela na tela do celular e pensa em não atender. Você deixa o telefone tocar até cair na caixa postal. Ela liga de novo. Você quer terminar.

Um dia você percebe seus ombros tão tensos e se lembra de Atlas, carregando eternamente o mundo nas costas. Você realmente se sentiria bem em trocar de posição com ele.

Um dia você abre sua caixa de e-mail e para de deletar aquelas mensagens de auto-ajuda em formato PowerPoint. Você começa a ler cada uma delas com atenção especial. Se emociona sempre no ultimo slide. Por algum motivo você deseja repassar aquilo para seus amigos. A sua vida está se derretendo aos poucos.

Um dia você acorda no meio de uma megalópole e a primeira buzina mal-educada te faz pensar: eu não sou daqui.  Você se lembra que é do interior, quase da roça. Pensa que nas cidades pequenas o mundo é diferente. Será possível viver lá? Terá de abrir mão de tanta coisa.

Nesse dia você se lembra que já tem 29 anos e que sua escolha tende a ser definitiva. Então, você vai?

***

Depois de escrever o texto acima, lembrei-me de do poeta Paul Verlaine que certa vez rabiscou: "Escolher uma vida humilde, repleta de trabalhos simples e pesados, exige muito amor". 

***

Abraço,
Luz na nossa Caminhada.

segunda-feira, 24 de maio de 2010

UMA TEMPORADA NO INFERNO

Uma noite, fiz a Beleza sentar no meu colo. E achei amarga. Injuriei.
[Arthur Rimbaud]

Faz mais de dois meses que escrevi aqui pela última vez. Bem sei que esta não é uma boa postura para aquele que deseja manter um blog. Porém, os dois ou três que me acompanham vão se lembrar do meu último texto, “Encruzilhada”, no qual eu falava sobre a necessidade humana de tomar decisões e sobre as decisões que realmente são definitivas. Bem, minha ausência se justifica por isto, estava em um momento de encruzilhada, sem saber para onde ir. Até que decidi descer aos infernos.

Lançando mão da mais simples das metáforas, nossa vida é toda organizada para que alcancemos o céu. Não o céu prometido pelos cristãos e muçulmanos, em um ainda desconhecida eternidade pós-morte, mas o céu do bem estar, da felicidade e dos prazeres possíveis nesta perigosa empresa a que chamamos vida. Quando, nalgum momento alguém chega a dizer, “minha vida está um inferno”, esta pessoa está no limite do mal-estar, da infelicidade e do desprazer. Em regra, buscamos o céu e temos horror ao inferno. Dedicamos boa parte de nossas forças vitais no caminho em direção ao tão esperado céu, enquanto tentamos escapar aos consecutivos infernos que se nos apresentam.


No meio da minha encruzilhada, escolhi seguir o caminho que me levaria diretamente ao inferno. Um caminho que já no pórtico se mostrava pedregoso, árido, sinuoso e longo. Fiz esta escolha inspirado em Ulisses [de Homero], o primeiro grande herói da literatura ocidental, que só teve forças para continuar sua inescrutável jornada depois de ter visitado os infernos. Lembrei também de Rimbaud, que depois da sua “temporada no inferno”, fez com que sua poesia atingisse contornos divinos. E até o próprio Jesus, segundo a tradição cristã, passou três dias no inferno antes de sua ressurreição.

E agora, já depois de ter descido aos infernos, aqui estou eu. Vivo. Mais forte. Ainda não cheguei ao meu céu, mas depois de ter passado pelos nove círculos infernais de Dante, me sinto mais próximo dos Campos Elísios. Aprendi a ir ao inferno em busca de respostas [com Ulisses], aprendi a fazer poesia no inferno [com Rimbaud] e a voltar com uma nova vida de lá [com Jesus de Nazaré]. Outros infernos virão, tantos céus serão desejados.

O que digo agora é que entre o caminho do céu e do inferno, sempre escolherei o do inferno. Porque, como o primeiro raio de sol depois de uma tempestade, o céu que vem depois do inferno, acreditem, é o mais alto dos céus. Porque, "à aurora - das mais escuras das noites escuras - revestidos de ardente paciência, entraremos nas esplêndidas cidades" [frase extraída do imaginário diálogo espiritual entre Rimbaud e São João da Cruz].

Pax vobiscum amicis,
Até a próxima.








[Foto: um momento de oração em Lourdes, França]

terça-feira, 16 de março de 2010

ENCRUZILHADA


O esforço é grande e o homem é pequeno.
Eu, Diogo Cão, navegador, deixei
Este padrão ao pé do areal moreno
E para diante naveguei.

[Fernando Pessoa]

Não há como escapar, dado que somos seres de infinitas possibilidades, nossa vida nada mais é do que o resultado de nossas consecutivas escolhas. São as opções que nos matam. Há quem perca horas escolhendo a roupa para sair de casa. Na bolsa de valores, há quem decida o destino de milhões de dólares em segundos. E ainda há a noiva indecisa na hora do “sim”, já no altar; o goleiro, diante do pênalti; o suicida, no alto da ponte; o enxadrista, posto em cheque pelo computador; ou mesmo o santo, convidado a negar sua fé ante o carrasco.

Das mais simples às mais complexas, toda escolha tem o poder de mudar a nossa vida. Talvez o mais triste seja saber que ao termo de uma escolha, todas as outras possibilidades relacionadas a ela, cessem naquele instante. Talvez essas possibilidades ressuscitem nalgum momento futuro, mas o momento da escolha é o momento da morte de todas as possibilidades não escolhidas. Por isso vivemos um eterno luto pela morte da vida que não tivemos.

Todo dia me arrependo de centenas de escolhas que fiz. Não sou hipócrita a ponto de afirmar que, ao rever a minha vida, faria tudo igual de novo. Se pudesse mudaria um monte de coisas das quais não me orgulho de ter feito, participado ou escolhido sem a devida reflexão necessária. Eis o ponto, refletir sobre as escolhas é fundamental. A reflexão não garante sucesso ante uma escolha, porém garante a dignidade de no futuro, mesmo ante uma escolha incorrigivelmente desastrosa, imaginar que, naquele instante da peleja, ela era a mais plausível entre todas as outras.

Hoje estou numa encruzilhada. Como todo mundo um dia já esteve, como todo mundo um dia vai estar. Só queria um pouco da coragem daqueles navegadores ibéricos que, sob as bandeiras de Portugal e Espanha, escolheram enfrentar os temidos monstros e abismos de além-mar. A humanidade aprendeu com eles que uma atitude corajosa pode receber a recompensa de um Mundo Novo. Hoje preciso da sorte de um Cristovão Colombo, que errou um caminho e achou o eldorado americano; da firmeza de um Fernão de Magalhães, vencedor dos mais sangrentos motins; e da sagacidade de um Diogo Cão, homem que nunca esqueceu de deixar seus marcos onde foi preciso escolher. De todos eles quero a coragem para, a revelia de qualquer escolha, seguir em frente.

Este é o momento de deixar o atual padrão e para adiante navegar. Será?

Fica o poema “Padrão” do homem que escolheu ser poesia, Fernando Pessoa, cantado pelo homem que escolher ser música, Caetano Veloso.




Pax Vobiscum Amices

Até a próxima.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

O PESO NO CORAÇÃO DE J. D. SALINGER

O homem imaturo é aquele que quer morrer gloriosamente por uma causa. 
O homem maduro contenta-se em viver humildemente por ela.
[J. D. Salinger]

Morreu Jerome David Salinger. Morreu na quinta passada, 27 de janeiro, quando eu ainda estava cumprindo minha odisseia sertaneja no Vale do Jequitinhonha, em Minas. É Estranho chegar em casa e saber que alguém que se admira tanto tenha falecido e o assunto, de certa forma, já está frio, ou morto. Mas este blog não pode abrir mão de algumas linhas em respeito àquele que é um dos secretos patronos deste espaço.
*
Não sou da geração que leu J. D. Salinger com surpresa, ou mesmo da geração que salingerse espantou com seu modo de vida. Quando conheci a obra de Salinger, “O Apanhador no Campo de Centeio” já alcançara o panteão da literatura como clássico irrefutável e sua vida de eremita já não era motivo de surpresa para ninguém. De Salinger, o que mais marcou a minha geração foi o mistério. Qual peso aquele homem traria no coração para se isolar tão radicalmente da multidão dos outros?
*
Todos nós precisamos de algum período de solidão. Quem nunca exclamou à irritante presença de outrem: “quero ficar sozinho!”. Lembro-me de um verso do poeta maior da lusofonia, o universal Fernando Pessoa: “Vão para o diabo sem mim,/Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!/Para que havemos de ir juntos?”. Quase posso ouvir J. D. Salinger repetindo este verso, como um mantra, em seu casebre montanhês de New Hampshire, “para que havemos de ir juntos, para que havemos de ir juntos...”.
*
Tanta coisa já foi escrita sobre a morte e a vida de Salinger, que não pretendocatcher me estender nesta postagem. Perdemos um dos últimos autores de algum clássico literário, só isso já bastaria dizer sobre ele. Lembro-me de uma comparação que li no Estado de Minas, por ocasião de um aniversário de publicação do “Encontro Marcado” de Fernando Sabino. O texto colocava as duas obras em pé de igualdade, não em termos de literatura, mas no que tange à influencia que estas obras foram capazes de exercer em consecutivas gerações de jovens. É incrível como estes dois romances povoam o imaginário de tão diversos grupos há tanto tempo. Li e amei as duas obras, porém sempre preferi o solipsismo debochado de Holden Caulfield à boemia intelectual do nosso Eduardo Marciano.
*
Adeus Salinger, você vai, mas fica o peso do seu coração.
*
***

A leitura de “O apanhador no campo de centeio” é, sem sombra de dúvidas, a mais importante de minha juventude. Tanto que na época, ainda na fina flor da juventude [tinha dezoito anos], escrevi um poema sobre Holden Caulfield, protagonista do clássico de Salinger. Cheio de vergonha, partilho o texto agora. É minha pobre homenagem a Salinger.


***


Holden Caulfield
Holden Caulfield não gosta de praticamente ninguém
Mas quando gosta é de verdade
.
Holden Caulfield não é de jogar conversa fora
Mas sempre quer ter alguém para conversar


Holden Caulfield não nasceu para bajular
E se bajula, é porque a pessoa merece


Holden Caulfield mente compulsivamente
Mas só conta mentira quando é necessário


Holden Caulfield é muito mulherengo
Pelo que sei só ama uma mulher


Holden Caulfield não gosta de estudar
Mas só porque na escola todos são uns chatos


Holden Caulfield adora fumar, beber, e se divertir até tarde
Mas só porque é menor de idade
.
Holden Caulfield é um cara meio estranho
Mas só aos olhos de quem é “normal”


Holden Caulfield só quer uma cabana na floresta
Um emprego num posto de gasolina, porque é só isto que lhe é necessário
.
Holden Caulfield só quer que todos lhe esqueçam
Pelos menos por algum tempo
.
Holden Caulfield só quer ser
The Catcher in the Rye, assim como eu


***

Pax Vobiscum Amicis
Até a próxima!

sábado, 2 de janeiro de 2010

MÍNIMA RESTROSPECTIVA LITERÁRIA [2009]

Em 2009 não tive lá muito tempo para ler. É triste dizer isso, porém é a dura realidade de quem apenas sonha ser um leitor em tempo integral. Acho que ninguém é isso, leitor em tempo integral, nem mesmo aquelas pessoas abençoadas as quais foram confiadas nossas bibliotecas. Quando adolescente sonhava ser bibliotecário, vivia em bibliotecas tentando desvendar os mistérios daqueles números e letras pregados com papel adesivo na lateral dos livros. Bastava olhar para o meu quarto para saber que eu nunca seria bibliotecário. Outras paixões vieram. A filosofia, a educação, a religião e, por fim, a área social. Todas essas atividades exigiram que eu permanecesse em constante estado de leitura. Tinha de ler sempre, mas tudo muito voltado para o trabalho, quase nunca podia me dedicar a minha verdadeira paixão, a literatura.
No ano passado, bati meu recorde negativo de leituras literárias. Li apenas cinco livros completos [para quem lia pelo menos dez por ano, é uma queda considerável]. E esta postagem é para fazer o resumo de minha pobreza. Como disse li cinco, mas só posso recomendar três. Dois deles não ousarei recomendar. Saramago me decepcionou em seu elogiado “A viagem do elefante”, achei uma história arrastada e sem brilho [acho que isso acontece porque a gente sempre espera muito de alguém que escreveu mais de uma mão cheia de clássicos]. Já a releitura do “Ulisses” de James Joyce outra vez me causou tanto espanto ante àquelas geniais descrições do nada, que não consigo escapar do sentimento de impotência para escrever sobre. Restaram-me três leituras para comentar, dois romances e um livro de poesia.
Comecemos pela poesia. No natal passado ganhei uma edição bilíngue do surpreendente “Os animais evangélicos e outros poemas” de D. H. Lawrence. clip_image001O livro de uma coerência literária que raras vezes notei em um volume de poesias. É como se as dezenas de poemas que ali estão, quisessem nos contar uma única história. A história do acelerado progresso da humanidade no século XIX, sobre como esse progresso tecnológico, político e social tem nos tornado cada vez mais autônomos e consequentemente sozinhos. Toda a tecnologia, que deveria servir para nos aproximar, diminuir fronteiras melhorar nossa vida, tem feito exatamente o contrário. Cada vez nos relacionamos menos, e quando nos relacionamos é tudo tão vazio. Chegamos ao nível no qual das relações pessoais são quase desnecessárias, e quando acontecem, na maioria das vezes, são conflituosas e fugazes. Essa crítica é tão comum que todos já estamos cansados dela. O que impressiona na obra de Lawrence é que ele não se posiciona contra o modelo atual de sociedade, ele também não o admira. Ele apenas acredita que é uma escolha coletiva que fizemos. Seus poemas, repletos de metáforas e imagens desconcertantes, “da minha parte, prefiro que meu coração se despedace” [p. 51] ou “todos os frutos tem o seu segredo” [p.59], mostram que a poesia também pode ser realista, contundente e sem o romantismo da esperança-cega. Recomendo “os animais evangélicos e outros poemas”, mas com um alerta: prepara-se para perceber o quão “demasiado pequeno és ante ao vento que te arrasta” [p. 47]. Que vento é esse? O vento do tempo. Não o tempo das horas, dos meses e dos anos, mas o tempo que passa sem que possamos contar, aquele tempo do qual sempre sentimos falta e nunca sabemos qual é.
clip_image003O segundo livro que completei no ano foi “As revelações picantes dos grandes chefes” de Irvine Welsh [aquele escocês desbocado que escreveu Trainspotting na década de 90 e depois sumiu]. Lembro que Borges recomendava que não deveríamos Ler nada que ainda não tivesse completado 100 anos. Não concordo com ele, há tanta coisa nova capaz de nos surpreender. Ler um autor contemporâneo é como conectar-se ao seu tempo. Assim me senti ao ler “As revelações...” é um livro contemporâneo que trata das relações entre os funcionários de uma repartição pública, suas lutas pelo poder, sua corrupção, seu mau-caratismo e completa falta de ética. O mais surpreendente no enredo é que o “vilão” da história, um típico conquistador alcoólatra irlandês, consegue transferir tudo que há de ruim em si, para o “mocinho”, o maior nerd do lado independente da ilha da Irlanda. Outra coisa que impressiona é a maneira como Welsh consegue vincular seus personagens ao espírito do ambiente onde estão inseridos. O livro se passa em Dublin, na Irlanda. E por mais que o nos afeiçoemos ao personagem nerd e sua luta pela ética e por uma escalada limpa numa montanha de sujeira pública, sabemos desde o princípio que vai vencer a batalha aquele que beber mais. Afinal, estamos em Dublin.
O terceiro livro que desejo recomendar foi minha ultima leitura do ano, mesmo porque só veio no natal, como presente. “O Tigre Branco” do indiano Aravind Adiga é um daqueles livros que a gente pega cheio de receio. Autor novo, vendeu milhões por todo mundo, tem uma capa muito desenhada e aquele monte de elogios de jornais do mundo afora na contracapa, este livro tinha tudo para ser mais um entre os milhares que encostei no limbo das leituras que nunca vou fazer. Li a primeira página e percorri as outras 260 em três dias. clip_image005“O Tigre Branco” nunca será um clássico da literatura. É um daqueles livros inteligentes, escritos com o esmero de quem fez um daqueles cursos americanos para escritores, mas não é um enlatado. Aravind Adiga mostra, já na sua estréia, que a literatura, se quiser sobreviver na época do Twitter e do Facebook, precisa estar em diálogo com essas mídias. A trama quase que inteira se passa dentro de um carro, onde motorista trama o assassinato do patrão. A novidade está na narrativa em primeira pessoa, que se dá em forma de uma longa confissão feita por meio de e-mails enviados por sete noites consecutivas ao primeiro ministro da China. No “Tigre Branco”, temos uma Índia muito distante daquela do Ganges mágico, ou do romântico Taj Mahal. O que vemos é um país fragmentado por seu rápido desenvolvimento, por uma democracia de mentira e pela exploração da minoria rica e estrangeira sobre a minoria indiana pobre e fácil de ser explorada. É um livro sobre exploração, empreendedorismo, assassinato e glória. É sobre a glória de um homem que mesmo tendo nascido na escuridão [pobreza], soube ascender à luz [riqueza], mesmo que para isso tenha de descobrir a parte mais escura de si mesmo. Um trecho: “Nunca antes na história da humanidade, tão poucos deveram tanto a tantos, Mr. Jiabao. Um punhado de homens, neste país, vem treinando os noventa e nove vírgula nove por cento restantes – mesmo que eles sejam fortes, talentosos, inteligentes – para viver em perpétua escravidão; uma escravidão tão forte, que se pode entregar nas mãos de um homem, a chave de sua emancipação e ele vai atira-la de volta, praguejando” [p.147].
Estão aí as três dicas. São tantos os livros possíveis e tão pouco tempo disponível. Mas esqueçam o tempo, e melhor não pensar nele. Enquanto pensamos no tempo, ele nos ultrapassa. Ler o que der, eis o meu propósito para este ano. Sem lamentação.
Pax tecum amici.
Bom 2010.